sábado, 26 de julho de 2008


Resenha do livro:
VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental: (séculos VIII a XIII); Tradução: Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1995.

Sendo um dos principais estudiosos da História das mentalidades e, sobretudo, do sentimento religioso do período medieval, André Vouchez é autor de obras de grande importância para o conhecimento desses temas. Além da obra sobre a qual vamos nos debruçar neste texto, podemos citar: La sainteté en Occident aux derniers siècles du Moyen Age d´après les procés de canonisation et les documents hagiographiques (2ed. Roma, 1988);; La santità nel Medioevo (Il Molino, 1999). Além das traduzidas para o português como: A Santidade (Lisboa, 1987) e ”O Santo” (In: Le Goff-org, 1990).

A espiritualidade na Idade Média ocidental: (séculos VIII a XIII), teve sua tradução autorizada da segunda edição francesa (La spiritualité du Moyen Age occidental), publicado em português em 1995 com 204 páginas. A obra está dividida em cinco partes temáticas, além da introdução, conclusão, bibliografia e índices. Este livro contém inúmeras informações, justamente em função disso e da brevidade da obra, por diversas vezes o leitor observará que alguns assuntos foram abordados de maneira superficial. No entanto, isso não retira da obra o seu brilho e importância, considerando a amplitude do tema tratado e a abertura do leque para estudos mais específicos. A especificidade e importância dessa obra estão na análise dos gestos, dos cantos, das representações iconográficas, das preces, ritos e devoções, onde Vauchez encara a espiritualidade como a maneira que se vive o conteúdo de uma fé. Destacam-se também as diferentes formas de espiritualidade proposta pelo autor, seja a da elite letrada ou da massa inculta, cada uma com sua forma de interpretação da mensagem cristã.

O tema central da obra, como já está indicado em seu título, é a espiritualidade cristã ocidental no período medieval, sendo que em cada capítulo especificado o período observado. No primeiro dos cinco capítulos do livro, Vauchez trata da “Gênese da espiritualidade medieval (séc. VIII - início séc. X)”. Em seguida, segundo capítulo, ele versa sobre “A Idade Monástica e feudal (final séc. X – séc. XI)”. O terceiro é “A Religião dos Novos tempos (séc. XI – séc. XII)”. Logo depois, Vauchez destaca “O Evangelho no Mundo: Cristocentrismo e busca da santificação (séc. XII – início séc. XIV)”. Por fim, veremos “O homem medieval à procura de Deus. Formas e conteúdo da experiência religiosa”. Analisaremos separadamente cada um desses capítulos a seguir.
Gênese da Espiritualidade Medieval (séc. VIII – início séc. X)

Este capítulo é um dos mais claros do livro, mesmo abrangendo um tão longo período de observação. Vauchez inicia-o confirmando o que a maioria dos estudiosos do catolicismo afirma e concorda: que essa religião tem como referência e norma ideal suas origens, por isso, a mudança quase sempre é vista como um mal. No tempo dos carolíngios, para se legitimar a sagração real, a Igreja adotou o retorno ao Antigo Testamento, aproximando-se ao Israel antigo. Vauchez observa que, nesse período, a prática religiosa está mais relacionada a uma obrigação social do que a uma expressão de fé ou devoção. Essa característica possibilitou o desenvolvimento do que o autor chama de uma civilização da liturgia, onde o ritualismo é um dos traços marcantes do culto e os fiéis meros espectadores.

Numa tentativa de enquadramento, o cristianismo impõe diversas exigências morais, essas foram expressas em diversos tratados. No entanto, Vauchez aponta que uma real experiência com o sagrado reduziu-se, durante muito tempo, a clérigos, monges e alguns leigos letrados. Acredito que a experiência com sobrenatural, observada em inúmeros dos atos da maioria leiga (crença em astros, amuletos, culto aos mortos, etc.) foi de grande importância para o catolicismo, visto que a Igreja procurou acolher aquilo que estivesse compatível com sua doutrina e que se verifica até nossos dias (exemplo do dia dos Finados).

A Idade Monástica e Feudal (final do séc. X – séc. XI)

O ponto principal deste capítulo é a crescente influência da espiritualidade monástica sobre o povo cristão, aqui o leitor tem esclarecimentos importantes sobre esses “homens superiores”. Os monges são apresentados como o grupo que melhor resistiu à secularização da Igreja (envolvimento de clérigos em questões políticas e econômicas), por isso foi entre eles que surgiram inúmeros movimentos de busca de uma profunda renovação espiritual. Os monges tinham uma espiritualidade e conduta em sua maioria pautada na regra de São Bento, praticavam diariamente uma liturgia com missas, orações, etc., além disso, trabalhavam (manualmente ou intelectualmente) e estudavam. Havia um ideal de vida angélica em que o mosteiro representava um “pedaço do céu na terra”, por isso estavam separados do mundo. Demonstravam desprezo às coisas terrestres, Vauchez nos mostra que os monges pregaram a incompatibilidade entre as preocupações mundanas e a vida religiosa, projetando o mal nas coisas, não nos homens.
O autor também destaca como a espiritualidade monástica influenciou a sociedade medieval. Para exemplificar isso podemos observar alguns parâmetros da Reforma Gregoriana: o celibato entre os padres também foi uma forma de separar aquele que celebra a missa do mundo, a exemplo de Cristo (casto e espiritual). No entanto, tal espiritualidade pouco influenciou a maioria leiga, por isso eles sentiam-se inferiores tanto no sentido religioso quanto cultural, Vauchez aponta esse sentimento de inferioridade como a maior conseqüência da difusão dessa espiritualidade. Inúmeros leigos, não podendo abraçar a vida monásticas (a mais excelente), aderem à vida eremítica, exageravam nos jejuns, flagelavam-se etc.

A Religião dos Novos Tempos (final séc. XI - séc. XII)

Muitos historiadores consideram esse período importante para avanços em vários setores da época. Vauchez destaca a expansão demográfica, a difusão de técnicas agrícolas e artesanais, o renascimento das cidades e a emergência de novos grupos sociais. Talvez seja em função das perturbações ocorridas neste período e de suas influências no mundo religioso que esse é o mais complicado capítulo deste livro. São inúmeras informações. No entanto, vale destacar aqui a idéia de retorno às fontes, procurava-se viver como a Igreja primitiva. Por isso, era importante para o período o ideal de vita apostolica (como a descrita nos Atos dos Apóstolos) e a pregação do evangelho.

Como os monges não pregavam, o eremitismo ganhou um grande impulso com o ideal de vida apostolica. Eles levavam uma vida ativa, trabalhavam com as próprias mãos, prestavam assistência a viajantes e pregavam a salvação a outros homens. Leigos, monges e clérigos, pessoas de todos esses grupos aderiram ao eremitismo, “mais um estado de espírito que uma forma de vida” (p.79). Para outros, a perfeição estava em adotar uma vida comunitária ligada à pobreza. Eram os cônegos regulares, eles elaboraram uma espiritualidade que exaltavam o sacerdócio, deviam praticar uma vida claustra, sendo exemplo da pobreza evangélica.

Vauchez mostra que, os movimentos acima citados começaram a questionar a riqueza e a contaminação com assuntos temporais por parte dos monges. Isso propiciou o nascimento de um novo ideal monástico, pois vários grupos pretendiam voltar à regra primitiva de São Bento. Instalavam-se em desertos, “longe do mundo” (centros urbanos), com o ideal de pobreza e vida apostólica. No entanto, como afirma Vauchez, discordavam entre o ideal e a realidade.

O Evangelho no Mundo: Cristocentrismo e Busca da Santificação (séc. XIII – início séc. XIV)

Para explicar suas afirmações, por inúmeras vezes o autor faz referência a textos escritos por religiosos do período. Desde o século XII vários deles colocam o Evangelho de Cristo como a mais perfeita regra, por isso cada Cristão deveria procurar viver de acordo com os ensinamentos e exemplos observados nos Evangelhos. Como é destacado por Vauchez, somente no século XIII, com São Francisco de Assis, é que a Igreja admitirá a propagação de tais ensinamentos. Francisco de Assis, além de alguns companheiros, foi o fundador da ordem dos franciscanos, ou Irmãos menores. Desejavam viver pobre e errantemente, a exemplo dos apóstolos e do próprio Cristo (“que não tinha onde reclinar a cabeça”) rejeitavam qualquer tipo de apropriação (seja comunitária ou individual), além de desenvolverem um ideal de igualdade entre clérigos e leigos. Todo esse ideal pode até ter durado um pouco de tempo, mas como observou Vauchez, a utopia franciscana era difícil de ser posta em prática.

Outra ordem mendicante deste período foi a dos Dominicanos, ou “Irmãos pregadores”. Tinham como objetivo “falar com Deus e de Deus”, por isso priorizavam o trabalho intelectual sobre a vida conventual e a liturgia. Além dos ideais de pobreza e humildade e da pregação do tipo apostólica, os dominicanos tinham como característica a função de “transmitir aos outros as coisas contempladas”, por isso ficaram conhecidos também como “doutores”, em contra partida aumento de poderio das universidades e da importância do saber teórico e prático. Exemplo do desenvolvimento e da importância dada ao saber por essa ordem é a influência que as idéias do dominicano São Tomás de Aquino ainda exercem na sociedade contemporânea.

Quanto aos leigos, Vauchez nos mostra que buscavam o espiritual nas Cruzadas (já que até as ordens militares tinham sua via de santificação), nas confrarias (grupos sócio-profissionais de ajuda mútua) que segundo Vauchez são o mais inovador aspecto de expressão da aspiração dos leigos na vida religiosa. O erro do confrade era expiado pela penitência, também se auto-flagelam publicamente.
O Homem Medieval à Procura de Deus. Formas e conteúdos da experiência religiosa

Neste interessante capítulo, Vauchez aponta as inúmeras formas de buscar a Deus do homem medieval. Um fato importante observado pelo autor, é a dificuldade que tinha o cristão medievo de pensar o abstrato, por isso sua experiência religiosa estava principalmente nos gestos e nos ritos. Destaca-se neste aspecto a peregrinação, ir ao lugar onde Deus escolheu para manifestar-se, onde ocorreu e podiam ocorrer milagres.

Vauchez destaca também a conquista de uma vida interior, o desenvolvimento de uma consciência. Por isso é de grande importância a confissão, gesto que absolve o ser humano do pecado e propicia a misericórdia de Deus em sua vida. Vauchez aponta também as origens da mística ocidental, origens da idéia de comunhão com Deus, que permite ao homem conhecer Deus “no mais profundo do mistério trinitário” (p. 174).

Vauchez encerra seu texto pontuando a estreita relação que existe entre a evolução da espiritualidade medieval e as transformações ocorridas no período, coloca então a vida espiritual como “tributária” dos sistemas econômicos e das relações sociais. Todavia, ele não é reducionista, observa que as mudanças ocorridas na espiritualidade não foram simples adaptações às mudanças sociais e econômicas, por isso devemos analisar inúmeros fatores.

Portanto, acredito ser de grande importância para o conhecimento e estudo do pensamento espiritual e cultural da Idade Média a leitura deste livro. Além disso, sabemos o quanto foi, e ainda é, importante para a humanidade a sua relação com o sobrenatural, fator que impulsiona mais ainda a leitura. Vauchez também abre um leque enorme para pesquisas mais específicas sobre determinados assuntos, daí a importância para aqueles que desejam estudar temas sobre a mentalidade religiosa medieval ou sobre as mudanças e permanências ocorridas no seio da Igreja Católica. Enfim, vale a pena lê-lo.